Escritor e tradutor Caetano Galindo ministrou Aula Inaugural do Departamento de Letras
Por Pedro Soares
A língua portuguesa falada hoje no Brasil é um campo de batalha de diferentes projetos, independente de ingerência política ou jurídica determinante. Para corroborar tal afirmação, o escritor e tradutor Caetano Galindo parte do princípio de que a língua é um fato social complexo, ninguém pode legislar sobre ela.
“É possível tentar, mas não costuma dar certo. O único elemento de legislação da língua portuguesa brasileira é a ortografia, que não é nem o idioma em si, mas sim uma convenção de como transcrever o idioma. E é importante lembrar que esse mero detalhe seja da seara da política e da legislação. Os rumos, os usos e os cerceamentos da língua não pertencem ao domínio da lei, mas isso não quer dizer que as pessoas não sofram punições por usar registros ‘errados’ no lugar errado: é o ouvido atento dos falantes — extremamente maldosos, muito dados a preconceitos — que pratica o real policiamento da língua”, explica o escritor, que veio à PUC-Rio para realizar a Aula Inaugural do Departamento de Letras no dia 3 de abril.
Galindo compara os movimentos da língua a uma revoada de estorninhos: todos os indivíduos estão tomando decisões em conjunto e de forma independente, e essas decisões determinam as novas direções do grupo. Segundo ele, os idiomas são arenas privilegiadas para estudar fenômenos sociais por muitas razões, inclusive porque ninguém pensa neles dessa forma.
“O idioma é o meio que a gente usa para pensar a sociologia, a filosofia, o que bem entender; é raro o momento em que alguém inverte a perspectiva e olha para ele com uma certa distância — e esse momento é o primeiro semestre do curso de Letras”.

Seu livro Latim em pó, lançado em 2022 e eleito Livro do Ano de Não Ficção pela Revista Quatro Cinco Um em 2023, tem o título inspirado na canção “Língua”, de Caetano Veloso.
“Eu lembro de ouvir essa música pela primeira vez — quando ela foi lançada, o que entrega a minha idade — e muitas coisas se resolverem na minha cabeça. A expressão ‘Latim em pó’ me chamou muita atenção. Isso que a gente tá falando aqui, o que falam na Academia Brasileira de Letras, de fardão, nada mais é do que um latim esmigalhado, descaracterizado, que do ponto de vista de um purista de Roma seria muito ruim. As pessoas que levaram o latim a todos os cantos da Europa não foram os intelectuais, mas sim a ralé. O que há de mais elevado no vocabulário francês, espanhol, italiano, romeno, vem de uma versão fuleira do latim, que a gente mesmo assim destruiu e transformou nessa língua maravilhosa e que continua se transformando”.
Galindo comenta que as mudanças no idioma sempre são consideradas degradações pela geração anterior, e na geração seguinte se consolidam como padrão. “Desde que tem alguém escrevendo, tem alguém escrevendo que os jovens estão destruindo a língua”, critica.
Para ele, o purismo é intrinsecamente ligado ao fato de que as elites querem sempre conservar a situação. Perceber isso, portanto, pode ser um movimento importante para compreender as dinâmicas sociais e começar uma mudança.
“Falamos um idioma que foi trazido de uma outra nação. Os portugueses falam um idioma autóctone, enquanto para nós ele foi imposto. Isso acabou gerando uma noção de que os brasileiros não sabem falar português, que nós somos penetras no baile da língua portuguesa, que o português é uma língua refinada demais para nós. E isso está relacionado com a ideia de que o que é considerado norma culta veio de fora”.
A língua portuguesa falada no Brasil, destaca Galindo, diferentemente do que se aprende tradicionalmente na escola, não foi simplesmente “influenciada” por línguas indígenas e africanas no vocabulário.
“Muitos fenômenos do idioma brasileiro se relacionam gramaticalmente com idiomas africanos como o banto e o quimbundo, por exemplo, e há pesquisadores que consideram o “Brasileiro” como uma língua separada justamente por isso, com uma gramática diferente do português europeu. E por muito pouco o Brasil não falou português. Antes do século XVIII, as regiões em que se falava português eram sobretudo o Nordeste açucareiro e o litoral. No resto se falava as línguas gerais. Houve uma tentativa violenta de reverter essa tendência, o português precisou ser defendido, inclusive a partir da proibição de outras línguas”.
No livro, em contraposição à “Flor do Lácio”, de Olavo Bilac, Galindo se refere ao idioma brasileiro como “Flor de Luanda”. Foi justamente a escravidão, segundo o escritor, quando uma massa de adultos que tiveram que aprender o idioma em circunstâncias desfavoráveis, que moldou e espalhou o idioma por todo o território nacional.
“E no momento que percebemos que a língua carrega as cicatrizes de um processo de escravidão e genocídio e mesmo assim ela é manipulável, e mesmo assim é possível criar a partir dela, ficamos fascinados e percebemos que o país pode ser diferente”, conclui.